Sempre que Remígia entrava na Terra dos Lobos sentia o desconforto de ser observada. Todos os homens a conheciam e sabiam que era ela, invariavelmente, a portadora das boas e das más (essas mais frequentes) noticias. Talvez por isso, Remígia tenha optado por lá ir de noite, quando menos ou, se a sorte a bafejasse, nenhuns olhos a perscrutariam tentando adivinhar o objectivo da sua visita. Com a capa sobre o rosto, esgueirou-se pelas ruas até chegar ao seu destino. Bateu à porta e quando Jugurta abriu, passou por ele sem lhe olhar o rosto. Quando alcançou o salão, tirou a capa da cabeça e olhou-o, finalmente. Jugurta que não percebeu à primeira quem havia sido a mulher que entrara por sua casa adentro, surpreendeu-se quando, uma vez removida a capa, a mulher se revelou ser Remígia. Apesar de serem os dois os responsáveis pela diplomacia e pela relação entre as duas terras, os encontros entre ambos eram raros, por imposição dela, e as questões eram, por norma, tratadas por carta e mensagens trocadas. Jugurta sabia que só algo muito grave a traria a sua casa, especialmente de noite. Remígia era fria e calculista e nunca demonstrava qualquer compaixão ou mesmo, e os Deuses sabiam o quanto ele lamentava isso, qualquer sentimento de afecto. No entanto, quando ela o olhou, naquela noite, Jugurta quase poderia jurar que tinha visto uma centelha de uma qualquer emoção. A frieza com que ela rapidamente camuflou esse vislumbre fazia vir ao de cima o pior de si e foi com uma voz livre de qualquer emoção que lhe perguntou ao que vinha.
Remígia sempre achara que Jugurta era atraente. Mas também sempre teve medo que essa opinião se baseasse no facto de ter poucos termos de comparação. Mas de uma coisa Remígia não duvidava: o homem era irritante:
- Precisamos falar do décimo sexto aniversário da Princesa. – Disse-lhe ela, enquanto tirava a capa, revelando um corpete com atilhos que o distraiu por alguns segundos, entretido que estava a fazer contas ao tempo de demoraria desapertar os nós. Fazendo um esforço para se concentrar depois de concluir que uma faca afiada resolveria o problema dos atilhos em segundos, acabou por lhe responder secamente.
- Por acaso, estás a sugerir que nós dois organizemos uma festa surpresa? – Sim, havia desdém na voz dele, mas isso não a surpreendia e ela sabia como o levar a ver o problema.
- Não, exactamente. Aliás, o problema é mais teu que meu. Serão os homens que andarão de cabeça perdida disputando a atenção de Amestris. – Ali estava. Toda a atenção dele concentrada nela. Jugurta era o responsável pela segurança da Princesa sempre que ela saía do Reino da mãe e essa era uma missão que ele levava muito a sério. Não só porque acabou por se afeiçoar à menina mas também porque Jefté era o seu melhor amigo. – Nós nem teremos que nos preocupar. Ao fim ao cabo, Amestris é responsabilidade tua quando se encontra do lado de cá… - E dito isto, Remígia começou a colocar a capa vagarosamente.
- Espera. – De costas para Jugurta, ela não pode evitar um sorriso de vitória ao ouvir a palavra. – Vamos conversar. O que achas que devemos fazer?
- Só vejo uma solução. – Remígia voltou a olhá-lo nos olhos. – Nós temos que convencer a Rainha e Jefté a casar Amestris com alguém de outra casa real.
- O quê? Estás louca? Juntar casas reais?
- Sim. Juntar casas reais. Se Amestris vier para aqui conforme está programado, os jovens disputarão os seus favores e sua atenção e quem os controlará? Quem garante a segurança?
- Eu garanto, Remígia. Como sempre garanti a segurança dela mesmo sem me aproximar. Quantas noites ela passou na Terra de Ninguém enquanto crescia? Alguma vez lhe aconteceu alguma coisa? – Jugurta estava furioso com a falta de confiança dela. Porque é que aquela mulher estava sempre disposta a pensar o pior dele?
- Isso eu não discuto porque eu acredito que a conseguisses proteger. – Ele olhou-a surpreendido com o voto de confiança. – Mas isso seria só o principio dos nossos problemas…
- O que é que queres dizer com isso?
- A sucessão.
- Qual sucessão? Quando Litgarda morrer só há uma sucessora: Amestris. Mulher, nada do que dizes faz sentido…
- E quem sucederá Amestris? Tu não vês que se Amestris não casar com outra casa real que garanta a estabilidade e manutenção de Pedras Rubras, o Reino está em risco? Imagina que Amestris tem um filho homem? Vai governar Pedras Rubras a partir daqui? E se for uma mulher? Vai manter a segregação? – Foi uma Remígia que Jugurta desconhecia que lhe agarrou o pulso com força e o aproximou dela para lhe sussurrar – Nós temos que casar Amestris com outra casa real. É a única forma que eu vejo de um dia voltar a unir este povo. Para isso Amestris tem que governar de fora. Sem um homem da Terra dos Lobos que tenha o estigma de ter sido expulso. Que não tenha rancor pelas mulheres… Amestris tem que casar com um homem de fora. Um homem que não odeie, ainda que só em parte, as mulheres de Pedras Rubras.
Pela primeira vez, Jugurta percebeu que o que Remígia pretendia a longo prazo era o fim da separação. E, pela primeira vez, Jugurta questionou-se se isso seria realmente o melhor para os homens.