Hoje fiquei sozinha em casa, pela primeira vez, desde que o pai morreu. Só tive noção de que não estava sozinha em casa desde há muito tempo quando me começou a faltar algo. Alguma coisa indefinida e que de inicio não conseguia entender. A meio da manhã, percebi. Faltava-me uma frase. Faltava-me o metro e oitenta e cinco a entrar em casa adentro (que sempre me pareceu pequena para ele) e fazer a pergunta sacramental: “Bom dia, miúda. Vou lá abaixo buscar o jornal, queres alguma coisa?”
Com a minha avó foi a mesma coisa. Via-a definhar, via-a literalmente morrer mas não me lembro – a minha mente bloqueia por completo – dessa parte. Eu nem sequer me lembro dela de cabelo curto que usou apenas nos dois últimos meses de vida. Lembro-me sempre do eterno cabelo irrepreensivelmente preso numa banana. Lembro-me do seu cheiro. Do seu ar arrogante, altivo, um nadinha aristocrático que eu sempre achei fabuloso numa mulher que não conseguiu concluir a 4ª classe e como isso a fazia infeliz (o facto de não ter estudado).
Fez até à 4ª classe porque fugia de casa com quando os 6 irmãos (todos homens) mais velhos iam para as aulas e aparecia-lhes lá. A minha bisavó, viúva, não a deixou fugir mais depois da 4ª classe que nas zonas rurais, nos anos 30, as meninas não precisavam de estudar.
Lembro-me da eterna história mal contada do seu casamento com o meu avô e que nunca saberemos ao certo se eles efectivamente eram casados ou não. De como lhe perguntava vezes, sem conta, acerca do casamento e ela, com o seu jeito tão particular e tão teimoso, se esquivava à questão. Só no funeral, se levantou um pouco o véu do mistério, o que me fez aumentar exponencialmente a minha admiração por ela (que a bem dizer já estava nos píncaros) e explicou tão bem a forma simples como ele encarava a minha união de facto (algo que nunca é bem encarado pelas avós). Só depois dela morrer, soubemos que em plenos anos 40, numa zona rural do norte do país, a mais nova de 7 irmãos, de uma família pobre se perdeu de amores por um homem 14 anos mais velho e com posses. A família dela não aceitava porque ele devia querer aproveitar-se dela (não deviam ver bem, que a mulher era linda de morrer, carago!) e era muito mais velho. A família dele não aceitava porque ela era pobre. A menina não vai de modas, deixa a casa da mãe, debaixo de pragas e maldições, de cabeça erguida e nariz empinado e vai viver com ele numa cabana à beira de um rio e assunto arrumado. Dizem os irmãos dela que a mãe em fúria, enquanto ela caminhava altaneira caminho abaixo, lhe atirou uma praga e um crucifixo gigantesco. A menina pára perante a agressão, volta-se para trás e diz: “Se pensa que cá o deixo, engana-se.” E de crucifixo na mão continuou caminho abaixo. O célebre crucifixo está ali, na casa ao lado, e mais do que um símbolo religioso, tornou-se num símbolo de amor e de determinação. Não sabemos se alguma vez chegaram a casar mas se o fizeram já foi depois de o meu pai ser concebido. O que explicou porque é que no seu leito de morte, já semi-inconsciente, quando o pai do Projecto entrou no quarto do hospital e alguém lhe disse que estava lá o meu namorado, ela se sentou indignada e, de dedo em riste, declarou: “Marido! Se vivem juntos estão casados e pronto!”
Lembro-me dos meus primeiros cinco anos de vida que foram passados com ela. Sim, que eu vim de férias aos 3 meses com ela a Portugal (para que ela pudesse exibir o primeiro elemento da nova geração a toda a família) e de férias continuo até hoje. Foi a ela que eu fiz passar as passas do Algarve com traquinices de alto calibre. Era na cama dela que eu me enfiava de manhã como hoje o meu filho faz comigo. Lembro-me que era capaz de passar horas com a cabeça no seu colo com ela a fazer-me festas no cabelo e como ela dizia que a massa incompreensível que forma o meu cabelo se deve ao facto de ter três tipos de cabelo diferentes: cabelos lisos, cabelos em canudo; e cabelo em carapinha. Lembro-me de estar sentada debaixo da figueira com o meu avô a comer melão no verão, toda lambuzada ou de como ele assava o milho e o barrava com manteiga. Lembro-me que ela fazia as melhores batatas fritas do mundo e até hoje nunca comi nenhumas iguais mas o óleo tinha que ser fula e a farinha para os bolos tinha que ser Branca de Neve do pacote azul ou estava tudo estragado. Lembro-me que não tocava em nenhum derivado do leite. Nem queijo, nem manteiga, nem nada que os contivesse. Detestava leite e adorava café e toda a descendência é igual. Nem o meu filho gosta de leite. Nunca gostou. Tenho que lhe deitar carradas de chocolate para a coisa descer porque se for branco entra e sai pela mesma via em tempo recorde.
Lembro-me de uma surra que ela me deu com os nervos do ‘que me poderia ter acontecido’ quando eu aos 4 anos empilhei cadeiras e bancos e trepei para cima de uma guarda-fatos para tirar uns brinquedos que lá estavam e voltei a descer com eles. Lembro-me que não me deixava brincar com algumas meninas da aldeia porque não eram ‘companhia para mim’.
Lembro-me que não era religiosa praticante. Sinceramente, nem me lembro de ir à igreja enquanto vivi com ela. Mas na Páscoa arejava as colchas que punha na janela para a procissão e o padre ia lá a casa beijar o santo. Um ano, um sobrinho dela levou-me na procissão (eu era mais ou menos a menina na mão das bruxas porque era a única criança). Deliciados pegaram na loirita dos caracóis e das bochechas e vestiram-na de anjo e lá fui eu. Quando passei por casa, dei uma de Carla Bruni e desatei a acenar a toda a família que estava à janela. Lembro-me da cara dela de escândalo. Dela a fazer-me sinais para parar de acenar. Não era religiosa mas respeitava os seus santos que tinha em casa e que ainda existem hoje. Lembro-me que me leu a história dos 3 pastorinhos e que eu chorei copiosamente.
Lembro-me de uma vez quase me esfregar com palha de aço porque, mais uma vez pegaram na loirita dos caracóis das bochechas e decidiram fazer dela menina das alianças no casamento de uma prima (a irmã do que me vestiu de anjo). Enfiaram-me (lembro-me tão bem) num vestido de veludo castanho e disseram-me para ficar quietinha. Eu fiquei impávida e serena a ver as senhoras a arranjar-se. Devo ter pensado, a certa altura, que me faltava perfume. Como o pechiché estava ocupado com as senhoras a arranjar-se e aqueles perfumes estavam fora de alcance, joguei mão à única coisa que devia ter à mão e que tinha um cheiro forte. Quando deram por mim tinha espalhado na minha pessoa e no vestido de veludo castanho um frasco de vicks vaporub. Tenho cá para mim que toda a gente ficou com o nariz desentupidinho naquele casamento…
Lembro-me que não me lembro de a ver chorar a não ser uma única vez. Lembro-me da arca de esferovite que ela trazia sempre que vinha a Lisboa de expresso ver as suas meninas (o que acontecia religiosamente 3 vezes por ano) carregadinha de coisas da quinta. Lembro-me das roupas que costurava e da disposição do seu quarto de costura e de como apenas costurava para certas senhoras e para nós e para ela. Não era daquelas costureiras que faziam bainhas e apertavam coisas, não. Ela era demasiado orgulhosa para isso… Fazia vestidos para casamentos, fazia vestidos de casamentos, fatos completos, sobretudos, casacos elaborados e eu ficava fascinada. Como fiquei maravilhada quando outra prima casou e ela fez-lhe um vestido que nada tinha a ver com os vestidos de noiva que eu conhecia. Muito simples, curto e azul… Passei horas à procura de agulhas e alfinetes que ela tinha que me manter ocupada e eu achava as coisas mais depressa do que o Santo António amarrado. Quando os meus apelos para que me ensinasse a costurar se tornaram demasiado insistentes, ensinou-me a bordar e a tirar moldes da Burda. Eu devia ter 5 ou 6 anos. Nunca me ensinou a coser. Tenho cá para mim que não o fez com medo de que eu quisesse fazer disso a minha vida e não, eu ia estudar. Estudar tudo o que ela não tinha podido estudar e ler livros, muitos livros. Quando lhe disse que não queria estudar queria ser cabeleireira (mais ou menos com a mesma idade) resolveu a coisa de forma simples: “Ai queres? Que nojo. Depois aparecem-te lá pessoas com piolhos e bichos no cabelo e tu tens que lhes mexer.” Acabou-se-me logo o sonho.
Nunca me lembro de a ver desalinhada. Era daquelas mulheres que quando aparecia para o pequeno-almoço, vinha imaculadamente vestida como se fosse sair (ainda que raramente o fizesse que a quinta dava trabalho que chegasse) e sem um único fio de cabelo fora do lugar.
Lembro-me que não me lembro de ir alguma vez ao médico. Nem com a cabeça partida ou com os cortes que me lembro de fazer. Tudo se resolvia com o fascínio da avó por sangue e pela medicina (“Ai se eu pudesse ter estudado… Hoje era médica… E uma boa médica…”) e com água oxigenada e terramicina, claro.
Lembro-me de uma inundação na quinta. De como eu e a minha bisavó ficámos no 1º andar a ver, da janela, o milho quase coberto por água. Lembro-me que ela sempre me disse que eu não podia lembrar-me destas coisas porque era demasiado pequenina quando aconteceram. Mas lembro-me…
15 comentários:
Vim aqui para ficar com o 1º. de Maio, e dou com uma maravilha destas. Não acho que a culpa seja do writer, nem da Tereza...
Ah! O 1º. de Maio, é meu. :))
:)
Pois lembrámo-nos. De tudo.
E olha que essas tuas lembranças são tão lindas...
e somos mm conterraneas, pá ;)
bj meu
Chuac...
E ainda bem que há memória...
E ainda bem que há memória...
Ainda bem que pus o despertador para o terceiro parágrafo...
:)))
Tou a brincar, Peixa. Para uma Dóri tens uma memória do camandro! E sabes escrevê-la.
(Também tás a treinar para o post a metro? Olha que se a Chefa faz é porque a coisa dá pilim...)
Tenho vindo aqui, desde sábado, todos os dias, mais do que uma vez ao dia... e ainda não consigo comentar. tenho um nó no peito.
Cy, o 1º já ninguém te tira, amigo! ;o)
Beijos, Fren.
Pois somos, Monikyta, pois somos.
Beijos, Sousóca.
Rodrez, bons olhos te vejam!!! Eu estou tão, mas tão, mas tão, mas tão em falta contigo que acho que nem vestida de fucshia da da cabeça aos pés me redimo. :p
(Bruce, há que aprender com os mestres, n'é? ;o)
Loira, não fiques. Recordar, às vezes, é bom...
Lindo! Um misto de lágrimas com sorrisos (pelas tuas travessuras... então a do vics...)
(que post fantástico)
(que senhora fantástica)
Fantástico!!!
Escreves que é uma absoluta delicia...
Irra, a última vez que me lembro de fungar e dar uma gargalhada ao mesmo foi no Marley & Me. Tu acabaste de me pôr no mesmo estado.
Isto não foi um post, foi uma ligação directa ao coração.
:)))))))
passo por aqui e tudo qto leio me agrada.
Parabéns. A tua escrita demonstra muita sensibilade e bom senso.
Gosto tanto de ti.
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